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Eco-Conceção do Futuro: O Regulamento de Produtos Sustentáveis da UE

Autor(es) LPL:
Heloísa Oliveira

O Regulamento de Conceção Ecológica para Produtos Sustentáveis (ESPR) é um regulamento da União Europeia (UE) que tem como objetivo tornar os produtos mais sustentáveis do ponto de vista ambiental. O ESPR entrou em vigor em 18 de julho de 2024 e substitui a Diretiva Ecodesign (2009). Este Regulamento tem como objetivo reduzir o impacto ambiental e climático dos produtos vendidos na UE, estabelecendo normas de conceção ecológica e tornando os produtos mais duradouros, reutilizáveis e recicláveis. É também proibida a destruição de produtos de consumo não vendidos em determinadas categorias, como os têxteis. Além disso, para aumentar a transparência e garantir que tanto os consumidores como as autoridades disponham de informações sobre a sustentabilidade dos produtos, o ESPR exige passaportes digitais de produtos (DPP) para todos os produtos abrangidos. Contudo, o êxito do ESPR dependerá, em última análise, dos atos de execução e da sua aplicação pelos Estados-Membros.

Num workshop online realizado a 21 de novembro de 2024, reunimos um grupo de especialistas para analisar os objetivos do ESPR e debater os desafios jurídicos da sua aplicação prática. O workshop adotou uma abordagem transversal, para explorar as dificuldades em garantir a funcionalidade e a integridade dos passaportes digitais dos produtos, bem como em assegurar os direitos dos consumidores para os produtos no âmbito de uma economia circular. Neste contexto, foi dada ênfase a quatro sectores-chave: têxteis, construção, produtos químicos e eletrónica.

A primeira sessão, presidida pela Professora Alex Cavoksi (Faculdade de Direito da Universidade de Birmingham), apresentou uma análise panorâmica crítica do ESPR. Representantes da Comissão Europeia, Anna Szajkowska e Paola Zanetti, partilharam detalhes relativos ao processo de negociação, destacando desafios como a definição do âmbito de aplicação do Regulamento, a inclusão eficaz de vendas pela Internet, a garantia da plena integração com outros atos legislativos europeus conexos e a inclusão de questões sociais – em especial as questões relacionadas com trabalhadores – nos atos delegados. Valeria Botta, responsável pela área Economia Circular e Natureza na Environmental Coalition on Standards (ECOS), uma ONG internacional, salientou a necessidade de a UE reduzir efetivamente o seu consumo e não apenas promover a conceção ecológica, se quiser tornar-se sustentável. A Professora Rosalind Malcolm (Universidade de Surrey) apresentou uma visão de longo prazo sobre a evolução significativa e positiva registada na UE no sentido de uma abordagem mais focada na circularidade de produtos. No entanto, advertiu também que a integração de uma avaliação do ciclo de vida completo no direito exigirá a superação de desafios horizontais, intermédios e sectoriais.

Os passaportes digitais de produtos (DPP) são considerados uma ferramenta importante para permitir uma maior integração das cadeias de valor dos materiais e ajudar na transição para uma economia sustentável mais circular. O segundo painel do workshop, centrado nos DPP, foi aberto por Andrea Charlson, da Madcaster, uma plataforma online que cria e gere passaportes digitais de materiais. Andrea partilhou exemplos reais de como a indústria da construção está a desenvolver DPPs para projectos de renovação de edifícios no Reino Unido. Apesar do aumento exponencial da procura de dados, Andrea salientou a relutância existente em partilhar dados por parte de muitas empresas, o que dificulta a transição para um sector da construção mais circular.  As principais barreiras à partilha de mais dados devem-se, em grande medida, à falta de confiança entre os intervenientes no sector da construção, bem como ao tradicional sigilo empresarial. Outro desafio para a implementação dos DPP é a complexidade técnica e regulamentar, entre sectores e dentro de cada setor. A Professora Laura Piscicelli (Universidade de Utrecht) apresentou uma análise pormenorizada dos desafios que se colocam ao desenvolvimento dos DPP e da forma como estes diferem consoante os produtos e sectores. Por exemplo, ao desenvolver um DPP os designers têm de determinar (i) que dados incluir, (ii) com quem partilhar a informação, (iii) o nível de exatidão dos dados necessário, dando resposta às exigências de responsabilização e de transparência, e (iv) durante quanto tempo os dados devem ser armazenados. Os próprios sistemas de dados DPP podem ser centralizados ou descentralizados, tendo cada uma destas abordagens implicações no controlo, acesso e segurança dos dados para todos os utilizadores. A estrutura dos DPP terá também implicações importantes na utilização de energia e, por conseguinte, para a pegada operacional quanto a emissões de gases com efeito de estufa, um fator cada vez mais importante na conceção da infraestrutura dos sistemas digitais. O Doutor Sean Thomas (Universidade de York) defendeu que os DPP podem permitir uma mudança de paradigma nos modelos empresariais no sentido de uma maior circularidade, reduzindo a procura de matérias-primas e a produção de resíduos. No entanto, alertou para o facto de esses sistemas poderem também conduzir a uma captura de elite, em que um pequeno número de empresas domina o mercado, através de obrigações resultantes de contratos comerciais e de leis de propriedade intelectual. Esta situação pode criar monopólios semelhantes aos que se verificam atualmente nas grandes empresas tecnológicas, como a Google e a Microsoft, aumentando ainda mais a desigualdade na distribuição de riqueza.

Antes do último painel, dedicado a discussões sectoriais específicas, o workshop examinou ainda um conjunto de questões que podem surgir com o ESPR no que toca a direitos dos consumidores. O ESPR criou novas obrigações neste âmbito e permite a definição de requisitos mais coerentes quanto a durabilidade, reparação e garantias. A Professora Vibe Ulfbeck (Universidade de Copenhaga) iniciou a sessão definindo as potenciais implicações positivas e negativas para os consumidores decorrentes da aplicação do ESPR, numa perspetiva de direito privado, sublinhando ainda que o ESPR altera os sujeitos da responsabilidade contratual tal como existia até agora, passando a prever fabricantes, importadores e prestadores de serviços como partes responsáveis. No entanto, a Professora Ulfbeck observou também que a responsabilidade pelo não cumprimento dos requisitos do ESPR em matéria de durabilidade e reparabilidade, tal como o próprio conceito de dano, ainda têm de ser desenvolvidos normativamente. O segundo orador, o Professor Beltrán Puentes Cociña (Universidade de Santiago de Compostela), apresentou uma análise específica dos deveres de reparação e garantia decorrentes do ESPR, referindo os numerosos desafios da criação de novos mercados ou da reorganização dos existentes para acomodar o direito à reparação e garantir as condições necessárias à sua operacionalização, tais como a existência de reparadores locais e a disponibilidade de peças. Sublinhou ainda que as condições de mercado devem ser acessíveis a todos os consumidores, nomeadamente aos consumidores com baixos rendimentos. Por último, a Doutora Eléonore Maitre-Ekern (Instituto Norueguês de Investigação da Água) sublinhou que o ESPR representa uma evolução significativa em termos de circularidade, complementando a evolução do direito europeia em matéria de resíduos, dando maior ênfase ao direito e ao comportamento dos consumidores, reforçando a prevenção da criação de resíduos e desenvolvendo o princípio da responsabilidade alargada do produtor. Concluiu que o ESPR, sendo plenamente aplicado, será um fator importante para alcançar uma economia circular sustentável dentro dos limites do planeta.

Na sessão final do workshop, foram discutidos em pormenor os impactos do ESPR em quatro sectores-chave – têxteis, construção, produtos químicos e eletrónica. Colette van der Ven (Tulip Consulting, Genebra) apresentou uma avaliação compreensiva dos potenciais impactos do ESPR em toda a cadeia de abastecimento do sector têxtil. No entanto, também chamou a atenção para o impacto que as mudanças poderiam ter sobre os trabalhadores dos países em desenvolvimento devido à transferência circular de atividades dentro da UE. O Professor Jonas Voorter (Universidade de Hasselt) apresentou uma visão panorâmica da relação entre o ESPR e o Regulamento dos Produtos de Construção (CPR), o qual também inclui disposições sobre DPP e contratos públicos. Jonas Voorter argumentou que o ESPR poderia atuar como uma rede de segurança para o CPR revisto, mas advertiu que poderia haver conflitos normativos se fosse implementado de forma inconsistente. O orador seguinte, Tim Becker (REACHLaw, Helsínquia), abordou o tema na perspetiva do sector dos produtos químicos. Destacou vários desafios fundamentais que se colocam ao sector químico quanto à implementação do ESPR, incluindo a falta de consenso sobre as definições específicas das substâncias que suscitam preocupação. O último orador, o Dr. Carl Dalhammar (Universidade de Lund), centrou-se no sector da eletrónica, destacando questões particularmente relacionadas com a durabilidade, a possibilidade de reparação e o fim de vida. Carl argumentou que, embora os DPPs possam ser usados para diferenciar taxas e responsabilidades, incentivando modelos de negócios alternativos mais circulares, será necessário para tal um quadro legal robusto.

Em conclusão, este workshop reconhece que o ESPR de 2024 representa um passo importante da UE no seu compromisso de transição para uma economia sustentável e circular. O workshop proporcionou uma rápida visão das principais questões e dos potenciais desafios – principalmente os relativos ao DPP e aos direitos dos consumidores – que devem ser considerados na implementação para que se atinjam efetivamente os objetivos. O sucesso do ESPR depende de numerosos mecanismos de implementação, incluindo ferramentas essenciais como os DPP, a responsabilidade alargada do produtor, e ainda as normas sobre durabilidade e reparabilidade. Além disso, os regulamentos de aplicação de outros atos legislativos da UE relacionados com sectores específicos, como a construção e os produtos químicos, também terão um impacto sobre o ESPR. O caminho a percorrer pelo ESPR não é simples. Em última análise, o sucesso do regulamento dependerá da colaboração entre decisores políticos, empresas e consumidores. A mudança das condições geopolíticas está a afetar as prioridades na UE, tal como acontece em muitos países da economia global. Restará saber se os Estados-Membros terão o empenho e a margem de manobra necessários para levar por diante os ambiciosos atos de execução do ESPR.

Autoras: Feja Lesniewska (University of Surrey), Heloísa Oliveira (Lisbon Public Law) and Kleoniki Pouikli (Utrecht University)

Lisbon Public Law Research Centre

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