The acórdão deste ano do Tribunal Constitucional junta-se ao grupo cada vez mais alargado de acórdãos que apelidamos de fraturantes. Desde os casos do aborto, lenocínio, casamento homossexual às barrigas de aluguer, o que fica claro em todas estas decisões é que não é possível ter perante elas uma atitude neutra, nem mesmo para o juiz constitucional. O Tribunal Constitucional vai procurar dosear essa carga valorativa com o seu dever de independência e estrita vinculação ao direito. (Para mais ver Medrado, 2017)
Como tem sido habitual nestes casos, o acórdão goza de um conjunto muito alargado de votos de vencido que ocupam no seu conjunto quase três vezes mais páginas do que o acórdão propriamente dito. Ao contrário dos votos de vencido que defendem ora um direito fundamental à eutanásia, ora a sua proibição, a decisão principal pretende ser uma repetição da sua própria jurisprudência e da do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH) e ao mesmo tempo distanciar-se da “questão fraturante” e empurrá-la para o plano político. Diz o douto acórdão, numa matriz claramente Rawlsiana: “A posição do Tribunal Constitucional é, pois, a de que a morte assistida, como questão de princípio, é um problema de ordem política, cabendo ao legislador, no gozo da sua legitimidade democrática, arbitrar a tensão perene entre valores constitucionais de sentido contrário neste domínio de vida caracterizado pelo dissenso persistente e razoável entre os cidadãos.” (Parag. 15)
Colocam-se desde logo dois problemas prévios. O primeiro é o de que não é tão óbvio como o tribunal agora faz crer que, na sua jurisprudência anterior, se tenha posicionado com essa neutralidade, por exemplo quando refere que proteger a vida humana em todas as situações de grande sofrimento contra a autonomia individual seria contrário à dignidade humana (cf. parag. 32 do acórdão 123/2021, voto de vencido de Rui Guerra da Fonseca do acórdão em causa e Pereira Coutinho 2023). O segundo problema está na equiparação dessa mesma neutralidade devida com a jurisprudência do TEDH. É que os tribunais internacionais e os catálogos de Direitos Humanos, devem reserva-se a standards mínimos para aferir casos de violação, deixando “uma margem de apreciação” aos Estados dentro da qual lhes cabe à luz das suas tradições constitucionais aferir se uma qualquer lei está a violar esses direitos ou não. Quer isso dizer que, quando o TEDH estabelece uma não violação de um direito fundamental num caso, não significa necessariamente que o Estado deva decidir no mesmo sentido. O Estado tem ainda de atender aos contornos dos direitos aos quais se autovinculou na sua própria jurisdição, sobretudo quando, como o próprio Tribunal Constitucional reconhece (parag 24 do acórdão 123/2021), o direito à vida assume uma posição ímpar na nossa Constituição. Parece-nos, por isso, desadequada a citação do caso Dániel Karsai v. Hungary, de 13 de junho de 2024 para se retirar dela uma conclusão de não violação do direito, em vez de a utilizar com fonte mediata de interpretação do standard mínimo devido como o faz o juiz conselheiro Carlos Luís Medeiros de Carvalho.
Mas o grande problema que queríamos hoje tratar é saber se será apenas o legislador quem tem o papel de “arbitrar a tensão perene entre valores constitucionais”. Não estará o juiz constitucional incumbido desse papel quando marca a fronteira de quais são e quais é que não os dissensos razoáveis”?
O uso e abuso do princípio da dignidade da Pessoa Humana
Dentro dos valores constitucionais o princípio da dignidade da Pessoa Humana é o princípio basilar e fundamental dos Direitos Fundamentais (Art 1º). Enquanto critério interpretativo, ele é utilizado para reforçar decisões de inconstitucionalidade por violação do núcleo de um direito. Enquanto limite ao legislador, o princípio delimita as situações que, ferindo ou não o núcleo essencial de um direito em particular, consubstanciam um tratamento desumano, podendo inclusivamente ter uma função “normogenética” (Benedita Mac Crorie, 2003), isto é, de dele se deduzirem normas não expressamente previstas na constituição. De modo geral, o Tribunal tem sido muito cauteloso em utilizar este princípio enquanto ratio decidendi das suas decisões, mas tornou-se praticamente impossível deixar de o fazer nestas “questões fraturantes”. Verificamos que nestas, para além de diferentes visões políticas, encontramos também visões jurídicas muito diferentes sobre o significado de um princípio que deveria ser o estruturante do ordenamento constitucional (não só do nosso, mas de todos os que foram herdeiros do paradigma que se sucedeu ao trauma do regime nazi e todas as atrocidades que este cometeu sob a capa de uma aparente legalidade).
Estas diferenças refletidas nos anteriores acórdãos, repetem-se uma vez mais nos votos de vencido, alguns expressamente fundamentando a sua divergência no princípio da dignidade humana: Joana Fernandes Costa, Afonso Patrão, Rui Guerra da Fonseca para dela extrair um direito a uma morte autodeterminada; Maria Benedita Urbano para exigir do Estado uma garantia de uma escolha efetiva entre a MMA, através de assegurar um mínimo de cuidados paliativos e João Carlos Loureiro, Carlos Medeiros de Carvalho para extraírem dela uma proibição de eutanásia. Pelo contrário, uma minoria mais cautelosa remete o problema para o conflito de direitos e a extensão que o direito à autodeterminação deve assumir (António José de Ascensão Ramos, José Eduardo Figueiredo Dias, em favor da MMA e José António Teles Pereira, defendendo que deve prevalecer a vida humana).
O que talvez não seja ainda demais recordar é que não são só estas situações polémicas que colocam uma tensão entre a autonomia dos sujeitos e outros valores constitucionais. De facto, o Direito é por natureza isso mesmo, uma regulação de vontades simultaneamente “autónomas” e inseridas em comunidade. A partir do constitucionalismo moderno esta regulamentação passa a estar fundamentada na constituição que simultaneamente a legitima e limita. À semelhança do que ocorreu com o fenómeno onusiano, nas constituições pós II guerra mundial preferimos remeter esse fundamento material para um conceito apreciado por todos, mas, ao mesmo tempo, interpretado de formas muito diferentes e como conseguimos perceber antagónicas. É urgente, por isso, uma reflexão sobre os fundamentos últimos do direito, antes que o rifte que se está a abrir possa destruir o elemento agregador das nossas sociedades.
Vamos falar acerca do elefante na sala
As visões subjacentes às divergências referidas partem de duas conceções muito diferentes do que é o ser humano e a relação que este estabelece com os demais, embora partam de uma premissa semelhante: o ser humano concreto é um ser livre, autónomo o qual deve valorizado com tal pelo direito. Para uma vertente objetiva de dignidade, enraizado na tradição judaico-cristã, é o ser que é valorizado pelo direito, impondo-lhe um absoluto respeito, desde logo pela sua vida, pressuposto material das suas dimensões espirituais. O ser humano deve ser antes de mais valorizado pelo ser que é, independentemente de estar apto ou não a exercer a sua vontade. O homem nunca pode ser utilizado como um mero meio, mas sim como um fim, até pelo próprio. Para uma vertente subjetiva, é a liberdade que deve ser valorizada e é em função desta que se deduzem as demais prestações que o direito deve assegurar para que esta possa ser prosseguida (teoria da prestação, com raízes em Confúcio) para mais veja-se Melo Alexandrino, 2010) O ser humano é visto assim como um ser que só será valorizado se for potenciado ao máximo a sua visão de liberdade.
Concordamos que o tribunal não deva, qual “rei-filósofo” de que falava Platão, escolher uma destas visões, sem qualquer margem de abertura e tolerância para as demais. Porém, nem sempre é possível uma convivência pacífica entre as várias visões, pois nos casos fraturantes, ambas se veem ameaçadas no que há de mais precioso em cada uma delas (o respeito pelo ser ou a prestação do possa contribuir para a realização do outro). Quando a visão subjetiva de liberdade se torna incompatível com a conceção de homem herdada da conceção judaico-cristã, o juiz constitucional é obrigado a tomar uma decisão quanto à interpretação (extensiva ou restritiva) que faz das normas constitucionais ancoradas neste princípio. A escolha do tribunal constitucional foi, como dissemos, o de remeter essa decisão para o legislador: perante as divergências presentes na sociedade, a constituição não adotaria nenhuma das conceções razoáveis, apresentando antes um conceito fraco de dignidade, (defendendo, pelo contrário, um conceito forte: Carneiro da Frada, 2010)ou se quisermos um conceito flexível de homem. No entanto, o problema não se pode dar por resolvido.
Sabendo que a sociedade é cada vez mais plural, fica a questão de saber até onde irá a flexibilidade do juiz constitucional, que pretende conciliar todas as visões “razoáveis” subjacentes ao conceito de dignidade: afinal nele cabe um direito a uma morte autodeterminada (conceção confuciana), mas ao mesmo tempo obriga a um processo especialmente exigente por conta do respeito pela vida humana (conceção judaico-cristã), sem que consiga explicar satisfatoriamente como podem as duas ser logicamente articuladas no caso concreto. Poderiam estas duas visões ser compatibilizadas numa situação de exploração laboral consentida? Afastar o princípio da dignidade da pessoa humana do debate não resolve o problema de saber até onde pode ir a tolerância face a novas conceções de dignidade sem abdicar da coerência (não é possível ser tolerável com os intoleráveis). Sublinhamos este ponto, porque falar de dignidade enquanto limite é falar dos “irrenunciáveis” do ordenamento. Só estes nos permitem uma abertura da constituição a várias visões do homem sem cair em insanáveis contradições e o debate sobre quais são estes ainda é escasso. (para mais Ratzinguer, Verdade – Valores – Poder, 2006)
Um melhor exemplo de como o ordenamento procura ter esta abertura a diferentes conceções de homem, vinculando o juiz constitucional a fazer este exercício de ponderação até onde deve ir a tolerância/quais são os seus irrenunciáveis, é no exercício do direito de objeção de consciência, que também é uma das novidades deste acórdão.
O direito de objeção de consciência
Mesmo existindo doutrina a afirma o respeito completo da objeção de consciência na presente lei (Jónatas Machado, 2023), o tribunal constitucional foi mais generoso e considerou que o legislador foi longe demais na compressão da liberdade de consciência quanto aos deveres acessórios impostos àquele que se recuse cumprir a regra geral de prestação do serviço de eutanásia por razões de consciência (objetor). A visão apresentada pelo acórdão foi a de que a objeção de consciência era uma decorrência lógica da liberdade de consciência e que o legislador, ao exigir a explicitação da natureza da objeção ao seu paciente, estaria a restringir de forma desproporcionada a liberdade de consciência do objetor, já que esta inclui também a liberdade de não manifestação das suas convicções.
Parece que estaria aqui em causa o princípio da adequação, já que o tribunal não consegue identificar de que modo é que a medida pode ser apta (ao contrário do que defendem muitos dos votos de vencido) a assegurar a sinceridade do objetor, o seu respeito pelos princípios de igualdade ou a promoção do diálogo médico-paciente (voto de vencido de Figueiredo Dias). No fundo o tribunal não conseguiu identificar nenhum motivo que pudesse justificar essa restrição e, por isso, este regime para os objetores deveria prever apenas os requisitos que garantissem uma justa adequação entre os valores em confronto.
O requisito imposto não parece restringir a objeção de consciência que efetivamente ficou salvaguardada, afetando sim a dimensão negativa da liberdade de consciência. Podemos em abstrato até admitir que pudesse ter existido algum fundamento razoável para impor esta interferência ao objetor. Afinal o objetor pretende efetivamente manifestar a sua consciência, por isso alguma manifestação ela terá de ser. Mas mesmo que assim fosse, este acórdão relembra algo essencial: a objeção de consciência não é uma prerrogativa do legislador. É um dever constitucional, pelo que não deve ser concretizado de forma arbitrária, mas sim dentro do respeito por todos os princípios constitucionais.
Efetivamente e assim o afirma o acórdão, o direito à objeção de consciência tal como previsto na nossa constituição é uma decorrência da liberdade de consciência, fruto de ponderação entre fins que a norma visa prosseguir e a liberdade de consciência que tem aplicabilidade direta na constituição na sua vertente de agir conforme à consciência. Não é essa a visão de toda a doutrina (veja-se os votos de vencido), mas é nesse sentido que vão os elementos teleológicos, sistemáticos e históricos do artigo 41º/6 e foi esta a visão que vingou no presente acórdão (como já tinha defendido no meu relatório de mestrado). Quando esteja em causa um dever jurídico que coloca um cidadão num grave dilema moral -nesta lógica de tolerância de que falámos- o legislador deve salvaguardar estas consciências, sempre que não haja razões maiores que o impeçam: por exemplo, os médicos objetores de realização de IVG, não o podem fazer quando estejam em causa risco de vida.
Podemos considerar a garantia da objeção de consciência nestas situações uma boa conciliação dos valores em presença, feita pelo legislador. De facto, ainda que em nome de uma dignidade como autonomia o legislador tenha atribuído um direito a um cidadão, não deve impor a outro, contra essa mesma autonomia, um dever de a prestar, pois, como defendi no meu relatório, impor a alguém que vá contra a sua consciência é mais agressivo do que não satisfazer uma exigência de consciência de alguém que não a pode realizar sozinha. E mesmo que o legislador não o tivesse feito, pela aplicabilidade direta deste preceito, poderia ainda assim o órgão jurisdicional reconhecer no caso concreto um direito do objetor sincero, pela importância que a liberdade de consciência tem para o nosso ordenamento.
Assim, a objeção de consciência apresenta-se como um exercício de reflexão quanto aos irrenunciáveis do nosso ordenamento (uma autonomia levada ao extremo não pode nunca ter uma interferência ainda maior na autonomia de outro) e como uma boia de salvamento para assegurar um mínimo de coerência perante um legislador que ao interferir em áreas com forte conteúdo valorativo, tem de tomar opções axiológicas não compartilhadas por todos.
Nota da autora: grande parte deste post, baseia-se em muitas das ideias já debatidas no relatório do Mestrado Científico, apresentado na Cadeira de Direito Constitucional em 2024: Objeção de consciência médica: Uma perspetiva jusconstitucional do recente caso da eutanásia.
Media: Bruno Gonçalves