Autor: Gonçalo Afonso
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Os movimentos antidemocráticos não são desconhecidos na internet, existindo na mesma desde o século XX, contudo limitados a cantos obscuros e pouco habitados. Só durante a presidência de Barack Obama nos E.U.A., movimentos extremistas ganharam popularidade nas redes sociais recorrendo a teorias da conspiração e alcançando pela primeira vez uma audiência mundial. Os algoritmos criados para incentivar a interação nas redes sociais, em junção com a maior interação com publicações extremistas devido às reações emocionais que as mesmas provocam, ofereceram a estes movimentos uma nova predominância, resultando na primeira eleição de Donald Trump em 2016, e nem mesmo mecanismos de verificação de factos durante a primeira presidência de Trump conseguiram travar a disseminação dos ataques direitos ao processo eleitoral de 2020 nos EUA.
A União Europeia não ficou alheia ao crescimento dos movimentos antidemocráticos nas redes sociais, pois devido à natureza internacional das mesmas, os mesmos afetaram também todos os Estados-Membros da UE. De modo a tentar impedir os mesmos acontecimentos que se verificaram nos E.U.A., o legislador europeu recorreu ao Regulamento dos Serviços Digitais (DSA). Ao regular as atividades das plataformas em linha de muito grande dimensão, nas quais se incluem todas as grandes redes sociais, p.e., Facebook, TikTok, X, Instagram, o DSA exige, no seu artigo 34.º, que as mesmas avaliem a existências de riscos sistémicos presentes nos seus sistemas, entre os quais “Quaisquer efeitos negativos reais ou previsíveis no discurso cívico e nos processos eleitorais, bem como na segurança pública”, de acordo com a al. c), do n.º 1, do mesmo artigo.
A letra desta alínea demonstra uma clara preocupação com os efeitos que o discurso nas redes sociais pode ter no Estado de Direito Democrático, porém, perante a ambiguidade da norma que se tenta retirar da mesma, ir além da interpretação dessa preocupação é um desafio tanto para as plataformas em linha de muito grande dimensão como para as autoridades de supervisão. Em nenhum momento o DSA determina o que se deverá entender por efeitos negativos no discurso cívico e nos processos eleitorais, revelando a dificuldade do legislador europeu em concretizar esta norma. Veja-se, p.e., o considerando (62) do DSA no qual o legislador se limitou puramente a repetir o texto do artigo 34.º, n.º 1, al. c), acrescentado também efeitos negativos à segurança pública, mais uma vez sem nunca concretizar o que se deverá entender como efeitos negativos reais ou previsíveis. Esta é uma alteração da versão final do DSA perante a proposta pelo Parlamento Europeu e Conselho, na qual, apesar de restringir os riscos sistémicos contra o discurso cívico e processos eleitorais para “A manipulação intencional do seu serviço…”, no artigo 26.º, n.º1, al. c) da proposta, equivalente ao artigo 34.º, n.º 1, al. c) da versão final, concretiza, no considerando (57), através de uma listagem exemplificativa, os factos dos quais poderão decorrer tais riscos, p.e., “ criação de contas falsas, da utilização de robôs digitais e de outros comportamentos automatizados ou parcialmente automatizados, o que pode conduzir à rápida e generalizada divulgação de informação considerada conteúdo ilegal ou incompatível com os termos e condições de uma plataforma em linha.”. Estas diferenças com a versão final do DSA, demonstram uma clara insegurança do legislador europeu na concretização dos riscos sistémicos contra o discurso cívico e os processos eleitorais, preferindo manter uma norma puramente abstrata.
Existem diversos conteúdos nas redes sociais que têm verdadeiros efeitos negativos no discurso cívico e também nos processos eleitorais. Todo o movimento da manosphere, baseado numa ideia de superioridade masculina sobre o sexo feminino e numa reconquista da posição social dos homens “alfas” e com uma proximidade assumida com a extrema-direita, cujos alvos são maioritariamente rapazes adolescentes o que tem resultado num aumento significativo da violência contra as mulheres nas redes sociais, e também na vida real. Também estaremos perante efeitos negativos nos processos eleitorais perante casos como o de Elon Musk, atual dono do X, que recorreu à sua própria plataforma para promover e apoiar diretamente o AfD, o partido de extrema-direita alemão, e também Georgia Meloni, a primeira-ministra italiana de extrema-direita.
Estes dois casos, caso a norma em questão existisse isolada do resto do DSA não causariam quaisquer dúvidas relativamente à sua inclusão no âmbito da mesma, no entanto, devido às, adequadas, obrigações de respeito aos direitos fundamentais dos utilizadores das plataformas, especialmente o direito à liberdade de expressão, p.e., na aplicação dos termos e condições (artigo 14.º, n.º 4) ou na atenuação dos riscos pelas VLOPS (artigo 35.º, n.º 1), determinar se estes casos se devem incluir nos riscos a ser avaliados e atenuados pelas VLPOS torna-se complexo e ambíguo e cada um levanta as suas próprias questões.
Relativamente à comunidade da manosphere, estamos perante diversos utilizadores que criam e publicam conteúdos semelhantes lesivos ao discurso cívico, porém esse mero facto não revela a existência de um risco sistémico a ser atenuado pelas VLOPS. Os riscos sistémicos, como se pode retirar do artigo 34.º, n.º 1, deverão ser riscos derivados dos próprios pilares e do funcionamento base das plataformas, incluindo os algoritmos, pelo que a mera existência deste tipo de conteúdo não poderá ser considerada um risco. Diferente serão as situações nas quais o próprio algoritmo demonstre uma maior preferência por este tipo de conteúdos, algo que se tem começado a verificar. Caso se verifique que os algoritmos utilizados estejam a ampliar a relevância de conteúdos extremistas, especialmente em plataformas de conteúdos curtos como o Tiktok ou Youtube Shorts, empurrando os utilizadores para estas comunidades, acreditamos que as VLOPS estarão obrigadas a atenuar tais riscos sistémicos, sob o risco de imposição de sanções por incumprimento do DSA. Infelizmente, devido ao secretismo que rodeia a criação e o funcionamento dos algoritmos utilizados não é desafiante para as VLOPS contestar qualquer alegação de incumprimento, alegando as mesmas que tais resultados não partem do código dos algoritmos e que qualquer ação contra tais conteúdos violaria o direito à liberdade de expressão. Parece-nos inevitável que qualquer caso que envolva a aplicação do artigo 34.º, n.º 1, al. c), do DSA, acabe no Tribunal de Justiça da União Europeia, cabendo-lhe o difícil trabalho de concretizar os critérios de aplicação desta norma.
Relativamente ao caso da participação ativa de Elon Musk nos processos eleitorais de Estados-Membros é outra a questão que se coloca. Perante publicações na sua conta no X demonstrando apoio por partidos antidemocráticos deveremos considerar que estamos perante comunicações de Elon Musk pessoa singular, ou Elon Musk CEO e representante da plataforma? Para outros CEOs de redes sociais, com uma vida mais reservada e afastada da opinião pública, a resposta seria relativamente simples, contudo, Elon Musk tem ativamente ligado a sua pessoa com as suas empresas, como se um não existisse sem o outro tornando bastante dúbia a distinção entre ambos. Acrescenta-se também o facto de, alegadamente, Musk ter forçado a alteração do algoritmo do X para promover as suas publicações sobre as de qualquer outro utilizador. Mais uma vez acreditamos que estamos perante a existência de riscos sistémicos, neste caso com efeitos reais ou previsíveis nos processos eleitorais dos Estados-Mesmos, no entanto, mais uma vez devido à natureza abstrata da norma em análise, caso as autoridades de supervisão decidissem recorrer à mesma para combater esta intervenção nos processos eleitorais, consideramos que tal caso seria decidido também no Tribunal de Justiça.
O legislador europeu demonstrou no artigo 34.º, n.º 1, al. c), uma clara e louvável vontade de proteger o discurso cívico e os processos eleitorais do Estado de Direito Democrático, contudo, ao inibir-se de concretizar esta norma extremamente abstrata impede tanto as autoridades de supervisão como as próprias VLOPs de combater, eficazmente, a existência de riscos sistémicos nas suas plataformas. O destino da concretização desta norma parece-nos inevitável, competirá ao Tribunal de Justiça tal função, no entanto, a sua natureza abstrata parece resultar num receio das autoridades de supervisão para recorrer a esta norma, atrasando o necessário processo de concretização jurisprudencial.