Autor: Gonçalo Afonso
No passado dia 8 de agosto o Tribunal Constitucional (doravante TC) publicou o Acórdão n.º 785/2025 (doravante Acórdão) no qual, a pedido do Presidente da República, apreciou em processo de fiscalização preventiva da constitucionalidade do Decreto n.º 6/XVIII da Assembleia da República (doravante AR) que visa alterar a Lei n.º 23/27 (doravante lei dos estrangeiros). O TC acabou por se pronunciar: (i) pela inconstitucionalidade da nova redação do art. 98.º/1 da lei dos estrangeiros por violação do art 36.º/1 e 6 em conjugação com os arts. 18.º/2, 67.º/1, 68.º/1 e 69.º/1 da Constituição (doravante CRP); (ii) pela inconstitucionalidade da nova redação do art. 98.º/3 por violação dos arts. 36.º/1 e 6, 67.º/1, 68.º/1 e 69.º/1 da CRP; (iii) pela inconstitucionalidade da nova redação do art. 101.º/3 da lei dos estrangeiros por violação do art. 165.º/1, al. b) da CRP; (iv) pela inconstitucionalidade da nova redação do art. 105.º/1 da lei dos estrangeiros quando conjugado com a nova redação do art, 98.º/3 da mesma lei por violação dos arts. 36.º/1 e 6, 67.º/1, 68.º/1 e 69.º/1 da CRP; (v) pela inconstitucionalidade da nova redação do art. 87.º-B/2 da lei dos estrangeiros por violação dos arts. 20.º/1, 18.º/2 e 268.º/4 da CRP; e (vi) pela não inconstitucionalidade das novas redações dos arts. 98.º/2, art. 87.º-B/3 e 101.º/1, als. a) e b) da lei dos estrangeiros.
O Acórdão, tendo em conta a sensibilidade política e constitucional do tema, foi inevitavelmente divisivo entre os juízes conselheiros do TC. Devemos, no entanto, deixar imediatamente claro o seguinte, não iremos neste momento analisar a posição maioritária dos do TC ou as diversas declarações de voto vencido. Neste breve texto iremo-nos focar no pequeno, mas poderoso e a nosso ver perigoso à parte presente na declaração conjunta de voto vencido dos juízes conselheiros Gonçalo Almeida Ribeiro e José António Teles Pereira. Na sua declaração de voto vencido os juízes conselheiros apresentaram, tal como se pode verificar em todas as restantes declarações de voto vencido, contudo os dois juízes conselheiros não se limitaram à pura argumentação e interpretação jurídica para demonstrar a sua discórdia com a decisão do TC. Numa tentativa clara de algum modo diminuir a validade argumentativa do TC os juízes conselheiros apontaram no primeiro parágrafo da sua declaração conjunta que a maioria do TC realizou “…uma escolha ideológica” em vez de realizar um raciocínio que satisfizesse o “…ónus exigente de fundamentação”. Ora, apesar de concordarmos sem qualquer dúvida com a posição de que o TC jamais deverá na sua atividade tentar substituir o legislador, “A legislação numa democracia constitucional não deve ser o produto de uma transação entre as preferências políticas da maioria parlamentar e da maioria dos membros da jurisdição constitucional, mas um exercício de liberdade programática limitado pelo respeito pelos direitos fundamentais e princípios estruturantes de uma república de pessoas livres e iguais”, competindo ao TC assegurar o respeito por tais limites, nos termos das suas competências como estabelecidas nos arts. 277.º ss. da CRP, não podemos concordar com a identificação de uma escolha ideológica como se de um elemento negativo se tratasse numa pronúncia do TC.
O TC e por consequência os seus juízes conselheiros têm uma função no nosso Ordenamento Jurídico inerentemente política e ideológica. Uma Constituição de um Estado de Direito terá sempre no seu núcleo uma escolha ideológica ao redor da qual todo o Ordenamento Jurídico será construído, as divergências ou semelhanças entre as inúmeras Constituições modernas são em grande parte ideológicas resultantes dos ambientes políticos que as originaram. A CRP é inclusive uma Constituição com um núcleo ideológico forte que oferece uma grande predominância à proteção de inúmeros direitos fundamentais com o seu devido detalhe, diferentemente, por exemplo, da Constituição francesa que não trata de direitos fundamentais no seu texto. As origens ideológicas da CRP são, inclusive, expressamente assumidas pela mesma no seu preâmbulo. Como poderá então um TC, perante uma CRP cuja ideologia basilar se baseia na garantia dos direitos fundamentais dos cidadãos nos princípios basilares da democracia e no primado do Estado de Direito democrático, ser ideologicamente neutro ao averiguar se uma lei viola direitos fundamentais constitucionalmente? A resposta é simples, não pode.
A política e a ideologia não se restringem nem se deverão restringir, jamais, puramente ao processo legislativo, especialmente em matérias que toquem diretamente na esfera de proteção dos direitos fundamentais em qualquer Ordenamento Jurídico. O que os juízes conselheiros deverão realizar dentro das competências do TC é averiguar se as normas a ser fiscalizadas respeitam os limites ideológicos consagrados na CRP e pronunciar-se de modo adequadamente justificado. A ideologia da CRP deverá sempre guiar as pronúncias e decisões do TC e é de acordo com a mesma que os juízes conselheiros deverão formar os seus argumentos. O facto de a CRP ter uma ideologia basilar não é um facto positivo ou negativo, é um facto necessário para que a mesma seja uma Constituição, quer seja a mesma mais politicamente de esquerda ou de direita a mesma é antes de mais uma ideologia do Estado de Direito democrático. As famosas tentativas de realizar uma limpeza ideológica da CRP, especialmente por partidos de direita, não têm como verdadeiro objetivo retirar da CRP qualquer ideologia, mas sim substituir a ideologia presente na CRP por uma com a qual tal corrente política se identifica mais.
O TC assumir a base ideológica da CRP como pilar basilar de todas as suas decisões não deve, no entanto, servir de justificação para tentar substituir o papel do legislador na sua legítima discricionariedade democrática, algo a que a maioria dos juízes do TC chegou perigosamente perto de fazer no Acórdão, ou pelo menos perto o suficiente para nos causar desconforto. Ao analisar o art. 87.º-B/2 do Decreto de acordo com o princípio da proibição do excesso o TC quase cai na armadilha do teste da adequação, incorrendo mais numa análise da legitimidade política da norma e não da adequação objetiva da mesma. Só não consideramos que o TC cai completamente na armadilha do teste de adequação, cedendo à tentação de substituir o legislador que este teste apresenta, por não assumir definitivamente que a norma chumba no teste de adequação como se pode verificar no §79 do Acórdão.
É possível e perfeitamente legítima um juiz conselheiro discordar da decisão maioritária do TC e apresentar os seus argumentos hermenêuticos. Os juízes conselheiros Gonçalo Almeida Ribeiro e José António Teles Pereira, não se limitam, porém, a apresentar a sua discórdia jurídico-hermenêutica, mas sim a sua discórdia com a suposta “escolha ideológica” realizada pela maioria dos juízes conselheiros. Ao recorrer a este argumento os juízes conselheiros não se limitam, contudo, a tentar diminuir a legitimidade dos argumentos que baseiam a decisão maioritária, não só no Acórdão, mas também na sociedade portuguesa, pondo em xeque a posição maioritária do TC aos olhos de muitos portugueses. Eis que, não denegrindo a legitimidade dos argumentos jurídicos apresentados pelos juízes conselheiros na sua declaração de voto vencido, ao tentarem exaltar de algum modo os seus argumentos, como se os mesmos apresentassem uma neutralidade ideológica que lhes oferece uma maior legitimidade jurídica, os juízes conselheiros acabam, inadvertidamente, por revelar a sua própria “escolha ideológica”.